UMA VISÃO FILOSÓFICA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
“DEMOCRACIAS FRACAS, CAPITALISMO E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL SÃO UMA COMBINAÇÃO PERIGOSA”
Mark Coeckelbergh: “Democracias fracas, capitalismo e inteligência artificial são uma combinação perigosa”. O filósofo aponta que as instituições devem recorrer a especialistas para regular a tecnologia, mas sem esquecer os cidadãos.
Mark Coeckelbergh atraiu a atenção de um público pouco acostumado a debates filosóficos: alunos de engenharia lotaram uma sala para ouvir este especialista em ética da tecnologia, convidado pelo Instituto de Robótica e Informática Industrial da Universitat Politècnica de Catalunya. Coeckelbergh, autor prolífico — dois de seus livros foram publicados em espanhol pela editora Cátedra, Ética da Inteligência Artificial (2021) e Filosofia Política da Inteligência Artificial (2023) — sabe o quão importante é construir pontes entre aqueles que desenvolvem tecnologias e aqueles que devem pensar em como usá-las.
Pergunta. Os estudantes, engenheiros e as grandes empresas de tecnologia levam em conta os aspectos éticos da inteligência artificial (IA)?
Resposta. As pessoas estão cientes de que essa tecnologia afetará nossas vidas, porque ela já está presente em todos os lugares, mas, ao mesmo tempo, estamos confusos, pois as mudanças são muito rápidas e complexas. Por isso, acredito que é importante que, desde a educação e a pesquisa, façamos o possível para buscar um caminho interdisciplinar, entre a filosofia, a programação e a robótica, para tentar resolver esses problemas éticos.
Pergunta. E em relação à política?
Resposta. Sim, precisamos criar mais vínculos entre especialistas e políticos, mas sem que apenas a opinião técnica seja levada em conta. Devemos pensar em como organizar nossa democracia para que a visão dos especialistas seja considerada, mas que as decisões continuem sendo nossas. As empresas de tecnologia estão cada vez mais poderosas, e isso é um problema, pois a soberania das nações e das cidades está diminuindo. Quanto do nosso futuro tecnológico devemos deixar nas mãos da iniciativa privada e quanto deve ser público e controlado pelas democracias?
Pergunta. A inteligência artificial é uma ameaça para a democracia ou as democracias já estão enfraquecidas?
Resposta. A democracia já é vulnerável porque, na verdade, não temos democracias completas. É como quando perguntaram a Gandhi o que ele achava da civilização ocidental e ele disse que era uma boa ideia. O mesmo acontece com a democracia: é uma boa ideia, mas não está completa. Para mim, não basta votar e eleger maiorias, pois esse sistema é muito vulnerável ao populismo, não é suficientemente participativo e não leva os cidadãos a sério. Falta educação e conhecimento para alcançar uma democracia real, e o mesmo ocorre na tecnologia. As pessoas precisam entender que a tecnologia também é política e se perguntar se é bom para a democracia que infraestruturas de comunicação, como o Twitter, estejam em mãos privadas.
Pergunta. De que forma a inteligência artificial ameaça a democracia?
Resposta. Estamos lidando com a tecnologia sem reflexão, usamos de forma acrítica, mas ela nos molda e nos usa como instrumentos de poder, controle e exploração dos nossos dados. Enquanto poucos lucram, o resto de nós é explorado por meio dos dados. Isso afeta as democracias, pois, por não serem muito resilientes, as tendências políticas se polarizam ainda mais com a tecnologia. Essa combinação de democracias frágeis, capitalismo e inteligência artificial é perigosa. No entanto, acredito que a IA pode ser usada de maneira mais construtiva, para melhorar a vida de todos e não apenas de alguns.
Pergunta. Alguns veem a inteligência artificial como uma forma de trabalhar menos e ter mais liberdade, enquanto outros a consideram uma ameaça para seus empregos.
Resposta. Acho que a inteligência artificial, neste momento, fortalece quem já tem uma posição privilegiada ou uma boa educação. Por exemplo, essas pessoas podem usá-la para abrir uma empresa. Mas haverá mudanças no mercado de trabalho, uma certa transformação da economia, e precisamos nos preparar. Por outro lado, o argumento de que a tecnologia torna as coisas mais fáceis… Até agora, ela gerou empregos precários, como os motoristas de Uber, e também empregos que podem ser bons, mas são estressantes. Por exemplo, todos somos escravos do e-mail, que chegou como uma solução.
Pergunta. Então, o problema não é tanto a tecnologia, mas o sistema?
Resposta. É a combinação das duas coisas, mas, de fato, essas novas possibilidades tecnológicas nos forçam a questionar o sistema mais do que nunca. Hoje, é no campo da tecnologia que ocorrem os grandes conflitos políticos.
Pergunta. Qual é o impacto da inteligência artificial na mídia?
Resposta. Nesse contexto, o problema não é que as pessoas acreditem em uma mentira, mas sim que não saibam distinguir o que é mentira e o que é verdade. O jornalismo de qualidade é muito importante para fornecer contexto e ajudar a entender o mundo. Acredito que pode ajudar as pessoas a terem mais conhecimento, mesmo que a inteligência artificial seja usada para algumas tarefas do ofício. Filósofos, jornalistas e educadores devem fornecer ferramentas para interpretar o mundo, porque quando falta conhecimento e reina a confusão, é mais fácil que surja um líder com uma solução simples e populista, como já aconteceu em alguns países da Europa.
Pergunta. A tecnologia pode fazer com que os governos se tornem mais tecnocráticos?
Resposta. Os políticos estão confusos, sentem a pressão dos lobbies e criam marcos regulatórios, mas os cidadãos nunca têm voz nesse processo. Os Estados se tornam cada vez mais burocráticos porque concedem poder a quem controla a inteligência artificial. Então, quem é o responsável? Esse tipo de sistema, como disse Hannah Arendt, leva a horrores. Devemos combater isso com regulamentações que permitam entender por que os algoritmos tomam certas decisões e identificar quem é o responsável.
Equipe de análise do Laboratório do Futuro. Artigo/Reportagem de Josep Cata Figuls.
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