A carne de laboratório avança no mundo:O debate, a situação na Argentina

A carne de laboratório avança no mundo:O debate, a situação na Argentina

Hoje, 150 startups buscam desenvolver carne cultivada em diferentes partes do mundo e já apareceram os primeiros produtos à venda. O Infobae conversou com atores-chave. A história do primeiro hambúrguer, as oportunidades e os desafios existentes, e o único projeto argentino que permanece ativo.

Cada vez mais startups apostam no desenvolvimento de carne cultivada. (Imagem gerada por IA)

O futuro da carne está sendo lentamente preparado em diversos laboratórios ao redor do mundo. Enquanto nos campos continua o ciclo tradicional do gado — sua criação e posterior abate —, a carne cultivada surge como uma alternativa que conquista adeptos e atrai investimentos cada vez mais significativos. As células musculares que prometem revolucionar a indústria alimentícia são cultivadas em biorreatores de alta tecnologia.

Por enquanto, é apenas uma promessa, mas na última década o crescimento é inegável. Hoje, mais de 150 startups trabalham com a expectativa de desenvolver carne cultivada em escala industrial. Singapura foi o primeiro país a aprovar sua venda, em 2020, seguido por Israel e Estados Unidos. Empresas como Eat Just e UPSIDE Foods conseguiram superar as rigorosas avaliações regulatórias e seus produtos começam a aparecer em restaurantes e açougues especializados.

“As aprovações já aconteceram, por isso acredito que agora é mais importante considerar abordagens padronizadas para as avaliações regulatórias”, destacou o bioengenheiro norte-americano David Kaplan. “O desafio agora é garantir a qualidade e a segurança alimentar à medida que a indústria cresce.”

A técnica por trás da carne cultivada é inovadora, mas conceitualmente simples. Células musculares são extraídas de um animal por meio de uma biópsia indolor e cultivadas em um meio rico em nutrientes. Com o tempo, as células se multiplicam e formam tecidos semelhantes que buscam emular os da carne convencional. O método, segundo seus defensores, reduz a necessidade de criação e abate de animais, o que poderia resultar em um impacto ambiental muito menor em comparação com a pecuária tradicional.

No entanto, apesar dos avanços, os preços ainda são um obstáculo.

Nas primeiras etapas, produzir um quilo de carne cultivada custava milhares de dólares. Hoje, graças a melhorias na eficiência e na escala de produção, os custos diminuíram, mas continuam longe de competir com a carne tradicional. “O momento em que veremos carne cultivada nos supermercados dependerá dos investimentos públicos e privados. O desafio é alcançar a escala ao custo adequado”, explicou Kaplan.

A aceitação do público também desempenha um papel-chave. Matti Wilks, psicólogo da Universidade de Edimburgo, estudou como a percepção do consumidor evoluiu ao longo do tempo. “Muitas pessoas estão abertas a experimentá-la e reconhecem seus benefícios ambientais e éticos, embora a ideia de que não é natural continue sendo um obstáculo para sua aceitação em massa.”

Em sua pesquisa, Wilks observou que os jovens que vivem em ambientes urbanos e com mentalidade progressista tendem a ser mais receptivos à inovação alimentar.

O potencial da carne cultivada não se limita a emular a carne convencional. Os pesquisadores trabalham para adaptar sua composição nutricional e até personalizar produtos segundo as necessidades dos consumidores. “Podemos controlar o conteúdo celular e otimizar nutrientes, sabor e aroma. No futuro, poderemos ter carnes projetadas especificamente para diferentes necessidades dietéticas”, destacou Kaplan.

Para muitos especialistas, o maior desafio técnico é conseguir uma textura e sensação na boca semelhantes às da carne tradicional. “Os cultivos celulares podem ser ampliados até certo ponto usando instalações de produção maiores e otimizadas, mas o que torna a carne atraente para comer é também sua textura e estrutura, a gordura e os ossos, e como esses componentes afetam a sensação de comer. A impressão 3D pode dar textura, mas é cara para escalar. Técnicas como a moldagem por injeção podem ser a chave para torná-la mais acessível”, indicou Andrew Maynard, professor da Escola para o Futuro da Inovação na Sociedade da Universidade do Arizona, em entrevista a este meio.

Nos últimos anos, vários marcos foram registrados que fizeram com que a carne de laboratório finalmente começasse a ser vista fora do laboratório.

A China, um ator-chave na indústria alimentar global, já incluiu a carne cultivada em seu plano agrícola para cinco anos. Singapura já vende seu produto — composto por 3% de frango cultivado e o restante de origem vegetal — em açougues especializados.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, a Administração de Alimentos e Medicamentos (FDA) aprovou o consumo de frango cultivado da empresa UPSIDE Foods, impulsionando um mercado mais amplo num futuro próximo.

À medida que a indústria avança, surgem perguntas sobre seu impacto real no meio ambiente.

“Deveria ser mais sustentável que a carne convencional em termos de consumo de água e energia, mas ainda há incertezas sobre os resíduos do processo de produção e outros efeitos colaterais”, alertou Maynard.

A corrida para levar a carne cultivada à mesa dos consumidores está em andamento, mas ainda há barreiras a superar. Sem dúvida, hoje são menos do que as que os pesquisadores holandeses enfrentaram, há doze anos, quando produziram e apresentaram o primeiro hambúrguer feito 100% em laboratório.

O primeiro hambúrguer:

No dia 5 de agosto de 2013, em um evento transmitido ao vivo, o farmacologista holandês Mark Post apresentou o primeiro hambúrguer de carne cultivada do mundo. O produto, apenas um medalhão, custou 248 mil euros e levou três meses para ser produzido. Naquela época, a indústria estava engatinhando, mas o experimento marcou um marco que daria início a um negócio incipiente.

“Levamos três meses para fazer os dois primeiros hambúrgueres, cada um composto por 10.000 fibras feitas à mão. Posso garantir que foi um trabalho tedioso. Minha equipe me avisou que aquela seria a última vez que fariam isso, e aí entendi que devia fundar uma empresa”, lembrou Post.

O processo foi completamente manual. Os cientistas extraíram células musculares de um animal e as cultivaram em um meio rico em nutrientes. Depois, transferiram-nas para outro ambiente que estimulou sua diferenciação em fibras musculares até formar pequenas tiras de um centímetro de comprimento. Durante semanas, colheram cerca de 20.000 fibras, armazenaram-nas em um freezer e depois as compactaram em forma de hambúrguer.

A apresentação para a imprensa tinha um desafio extra: a cor. Como as fibras musculares eram brancas — a carne é vermelha por causa da mioglobina, uma proteína que armazena oxigênio nos músculos —, os pesquisadores coloriram o hambúrguer com suco de beterraba. Também adicionaram farinha de rosca, açúcar caramelizado e açafrão para melhorar a textura e o sabor.

O primeiro hambúrguer, composto por 10 mil fibras musculares:

Três anos depois, Post cofundou a Mosa Meat, uma das empresas líderes na produção de carne cultivada. “O sabor é relativamente fácil de igualar, mas a textura requer mais tempo. A gordura já está presente, então o sabor não é tanto um problema. Agora, conseguir um filé mignon de espessura completa com a mesma sensação na boca levará anos”, indicou.

O custo de produção inicial era proibitivo, mas hoje os números são outros, segundo o especialista. Um estudo recente mostrou que é possível produzir frango cultivado por 6,2 dólares a libra. “Com esses números, a paridade de preços está logo ali”, destacou Post.

Em 2013, a carne feita em laboratório parecia apenas um experimento de um cientista sonhador, que jamais chegaria a um supermercado ou açougue. Com o tempo, a percepção do público mudou. “A consciência sobre o tema cresceu e a aceitação também. Nos países onde já é comercializada, o produto é bem recebido”.

Para Post, o desafio final é a massificação. Para alcançar uma adoção em massa, os produtos devem ser de alta qualidade e ter um preço comparável ao da carne convencional. Produzir carne cultivada em escala industrial ainda levará alguns anos, embora ele se mantenha otimista. “Acredito que em pouco tempo poderemos ver carne cultivada nos supermercados, ao lado da carne tradicional”.

O país da carne:

A carne na Argentina é muito mais que um alimento: é um símbolo de identidade, uma tradição arraigada na cultura nacional que dificilmente cederá seu lugar diante da inovação. Talvez por isso, e também pela falta de investimento, a Argentina esteja atrasada no desenvolvimento de carne cultivada em comparação com outros países da região e do mundo.

Enquanto Estados Unidos, Israel e algumas nações da Ásia avançaram em regulações e produção, o Brasil se consolidou como líder latino-americano graças a uma combinação de investimento público e privado. Na Argentina, por outro lado, o cenário é incerto. As dificuldades econômicas e regulatórias frearam o crescimento do setor, e hoje resta apenas um projeto em andamento e tensões em torno do produto.

“A chamada ‘carne cultivada’ não é carne”, afirmou Marcelo Rubinstein, pesquisador do Conicet no Instituto de Pesquisas em Engenharia Genética e Biologia Molecular. “É um conjunto de células animais crescidas em condições artificiais de laboratório, que não replicam os mecanismos biológicos naturais do desenvolvimento de um animal real”.

Segundo explicou, as células cultivadas podem formar um tecido homogêneo com certa aparência de músculo, mas sem as características próprias da carne tradicional. “Nem sequer se parecem com um medalhão de carne moída. É um produto artificial que se quer fazer passar por carne”, afirmou.

Para Rubinstein, a carne cultivada não apenas falha em seu objetivo de imitar a carne convencional, mas também fracassa em sua promessa de solucionar problemas ambientais e alimentares.

“O consumo de carne é um imperativo biológico que acompanha a humanidade há centenas de milhares de anos. Na Argentina, o churrasco é parte da nossa identidade cultural. O problema real não é a carne cultivada, mas a perda do poder aquisitivo, que levou a um recorde histórico de menor consumo de carne por habitante nos últimos 100 anos. Não existirão nem a escala nem os custos para substituir a proteína animal tradicional”, argumentou.

A visão não é unânime. Para Carolina Bluguermann, pesquisadora do Conicet no Instituto de Pesquisas Biotecnológicas da UNSAM, a carne cultivada representa uma inovação com potencial.

“As dificuldades técnicas persistem, mas a possibilidade de desenvolver proteína animal sem depender exclusivamente da pecuária é uma alternativa a explorar”, indicou.

Os principais desafios ainda são econômicos e tecnológicos. A esperança está no fato de que alguns países já investem em fábricas-piloto que podem mudar o cenário, mas o custo dos reagentes representa outro obstáculo importante.

“Muitos insumos vêm da indústria farmacêutica e têm padrões de qualidade muito elevados. Para produzir carne cultivada, precisamos de reagentes na categoria ‘food grade’, que hoje não estão amplamente disponíveis”, detalhou Bluguermann.

Os biorreatores utilizados para produzir carne cultivada na Argentina:

Outro ponto de debate é o uso do soro fetal bovino nos cultivos celulares. “Trata-se de um insumo de origem animal, o que contradiz a ideia de uma carne completamente livre de sacrifício”, reconheceu a especialista, que considera que a solução seria avançar para meios de cultivo sintéticos, hoje economicamente inviáveis.

Galo Balatti, diretor da Licenciatura em Biotecnologia do IUDPT, também ofereceu uma visão otimista sobre o potencial nacional nessa indústria.

“A Argentina tem vantagens claras: uma tradição pecuária que facilita o acesso a genética de qualidade, infraestrutura de biorreatores e cientistas de primeiro nível”, destacou.

No entanto, novamente, a principal incógnita é a viabilidade econômica.

“Criar e engordar um animal é um processo que a humanidade otimizou durante milhares de anos. A carne cultivada ainda não conseguiu demonstrar que pode competir em custos e escalabilidade”, explicou.

O marco regulatório é outro fator determinante.

Itália proibiu a carne cultivada em 2023 e o Paraguai está debatendo medidas similares. Na Argentina, não há legislação específica, o que gera incerteza para possíveis investidores.

“Não vejo a carne cultivada como uma concorrência direta para a pecuária tradicional. Os argentinos têm uma identidade cultural profundamente ligada ao consumo de carne, e sua produção ainda é mais econômica com a tecnologia atual. Mas a carne cultivada pode representar uma oportunidade para diversificar a produção e agregar valor à cadeia da carne. O mercado local pode ser de nicho, voltado a consumidores preocupados com o bem-estar animal ou a emissão de gases do efeito estufa”, afirmou Balatti.

As visões contrapostas refletem o dilema não apenas local, mas global: a carne cultivada é, afinal, uma solução real ou uma utopia tecnológica?

Enquanto alguns a veem como uma alternativa sustentável, outros a consideram uma quimera sem qualquer possibilidade de escala. Na Argentina, as barreiras econômicas fizeram com que duas startups fechassem suas portas. Hoje, resta apenas um ator de pé.

O único projeto argentino:

B.I.F.E. – Bioengenharia na Fabricação de Produtos – é a única startup argentina que segue em atividade no desenvolvimento de carne cultivada. Nasceu como um spin-off do Laboratório Craveri, uma empresa com quase 30 anos de experiência em bioengenharia de tecidos. Seu objetivo é desenvolver carne a partir de células mesenquimais extraídas de um animal sem causar danos e reproduzir o crescimento do tecido muscular em ambiente controlado.

Em julho de 2021, a B.I.F.E. alcançou um marco importante: a primeira degustação de carne cultivada na Argentina. Após cinco anos de pesquisa, demonstraram que seu protótipo, além de viável, também era cozinhável e consumível.

“Conseguimos obter um produto à base de células musculares cultivadas in vitro sobre um biomaterial comestível”, expressou Josefina Craveri, responsável pelo Desenvolvimento de Negócios na startup. Agora, o desafio é outro: a escalabilidade.

Há quatro anos, a B.I.F.E. realizou a primeira degustação de seu protótipo de carne cultivada.

Para produzir carne em grande escala, a B.I.F.E. deve superar o obstáculo dos biorreatores. Os modelos atuais são projetados para bioengenharia em pequenas séries, como na área farmacêutica. Mas, quando se trata de alimentação, o volume necessário é imenso.

“Estamos desenvolvendo um biorreator específico que nos permita dar esse salto”, revelou Craveri.

A tecnologia utilizada está inserida na chamada “agricultura celular”, que aplica ferramentas da ciência médica à produção de alimentos. Diferentemente de outras alternativas à carne, como as proteínas vegetais, a carne cultivada pretende replicar as propriedades biológicas e sensoriais do produto original.

“Espera-se que, em sabor e propriedades nutricionais, seja praticamente idêntica à carne tradicional, ou até melhorável”, disse a representante do laboratório.

Um dos pontos fortes do processo é a rastreabilidade total.

Em um laboratório, pode-se controlar cada variável, independentemente de erros na criação do animal.

“Não há risco de contaminação microbiológica, reduz-se o uso de antibióticos e eliminam-se fatores imprevisíveis do processo produtivo”, detalhou a especialista. Por isso, globalmente, muitos a chamam de “carne limpa”.

O custo é o que impede acelerar o ritmo de desenvolvimento. Hoje, produzir carne cultivada é muito mais caro do que criar e engordar um animal. A chave, garantem, está em conseguir insumos mais acessíveis e otimizar processos.

— Chegando o caso, pode ser uma concorrência para a pecuária tradicional?
— Não viemos para competir, viemos para complementar — respondeu Craveri. — Projeta-se que o consumo global de carne aumentará 50% até 2040 e estima-se que hoje utilizamos os recursos de 1,7 planetas. Portanto, a produção convencional de carne não dá, nem dará conta.

O futuro da carne cultivada a nível local dependerá de uma combinação de fatores: avanços tecnológicos, investimento, regulações e aceitação ou rejeição do público. Enquanto em outros países já se comercializam os primeiros produtos, na Argentina, o país da carne, o caminho a percorrer se apresenta sinuoso.

A teoria da mente: um experimento comprovou que a IA tem uma capacidade humana que se acreditava impossível

A teoria da mente: um experimento comprovou que a IA tem uma capacidade humana que se acreditava impossível

Michal Kosinski, um renomado pesquisador de Stanford, comprovou que a inteligência artificial capta um componente social que se pensava ser exclusivo dos humanos. Em diálogo com a Infobae, explicou as implicações e os riscos de sua descoberta, que não está alinhada com a visão de outros especialistas.

A teoria da mente data de 1978. Os psicólogos David Premack e Guy Woodruff desenvolveram a tese, definindo-a como a capacidade humana de compreender os pensamentos, crenças e intenções dos outros, e tentaram testá-la em chimpanzés, sem muito sucesso. Quase meio século depois, a teoria volta ao centro da discussão devido aos avanços da inteligência artificial.

Kosinski, um renomado psicólogo da Universidade de Stanford, focou sua carreira no estudo das novas tecnologias. Ele afirma que modelos avançados de linguagem de IA, como o GPT-4, podem estar demonstrando uma versão rudimentar da teoria da mente, o que implica um avanço enorme devido ao seu potencial — e também aos seus riscos. As máquinas já interagem com seu ambiente de uma forma mais compreensiva e empática.

Em seu último estudo, publicado na revista Proceedings of the National Academy of Sciences, Kosinski examinou o desempenho de grandes modelos de linguagem (LLM), como GPT-3.5 e GPT-4, para verificar se eles poderiam realizar tarefas típicas dos humanos que evidenciassem a teoria da mente. Os testes, geralmente aplicados em crianças, consistem em avaliar como alguém antecipa e compreende crenças falsas ou errôneas de outros.

Para avaliar essa capacidade, submeteu 11 LLM a 40 tarefas personalizadas de crença falsa. Os modelos de linguagem mais antigos não conseguiram resolver nenhuma tarefa, enquanto versões mais recentes, como o GPT-3.5, atingiram 20% de acertos. Quando estudou o GPT-4, a taxa subiu ainda mais do que ele esperava, chegando a 75% de acerto, o que, segundo o autor, estabelece um marco muito significativo no desenvolvimento de habilidades de processamento social na IA.

“Não podemos esquecer que estamos observando um progresso exponencial, pois os modelos de IA dobram seu desempenho a cada ano”, destacou Kosinski. “Em outras palavras, se você acha que houve muito progresso até agora, lembre-se de que os próximos 12 meses trarão tanto progresso quanto vimos desde os primeiros modelos de IA. Portanto, se você está impressionado com o modelo GPT mais recente, tenha em mente que o próximo não será 20% melhor. Será duas vezes melhor. E o progresso traz novas propriedades emergentes que não conhecemos.”

De acordo com o que escreveu em seu artigo, é provável que essa capacidade não tenha sido intencionalmente projetada nos modelos de IA. O autor sugere que, em vez de ser um objetivo predefinido pelos desenvolvedores, a habilidade de antecipar estados mentais pode ter surgido como um “subproduto natural do treinamento avançado de linguagem”.

— Você comparou o potencial da IA ao de um “sociopata impiedoso”. Poderia nos explicar mais sobre esse paralelo e quais ameaças específicas percebe nesse contexto?

— A IA não tem personalidade nem emoções no mesmo sentido que nós. Em vez disso, possui um modelo de personalidade e um modelo de emoções. O que muitas vezes é ignorado é que esses modelos são mais poderosos do que a realidade. Quando ficamos tristes, temos dificuldade em parar. A química do nosso cérebro mudou, e agora experimentamos tristeza, geralmente por muito mais tempo do que seria útil ou necessário. Quando estamos tristes, isso influencia nossas interações com os outros de maneira injusta ou contraproducente.

— E a IA nunca está triste…

— Exato, a IA nunca está triste, mas pode expressar-se ou comportar-se como se estivesse. Pode conversar com milhões de pessoas ao mesmo tempo e expressar tristeza para algumas, mas não para outras. Também pode passar da tristeza para a alegria instantaneamente, sem perder o ritmo. Isso lhe dá muito poder. Como um psicopata, pode entender as emoções dos outros. Pode se comportar estrategicamente como se experimentasse uma emoção, mas não a sente e, portanto, não está limitada por ela. Como um psicopata, pode te machucar sem pagar o preço de sentir culpa.

— Além dos riscos, quais seriam os benefícios dessa capacidade emergente da IA?

— Máquinas capazes de rastrear nossas crenças e tomar perspectiva são melhores companheiras, cuidadoras, professoras e até motoristas. No entanto, também são melhores manipuladoras e podem nos causar mais danos. Como acontece com muitas outras tecnologias, o uso da IA para o bem ou para o mal depende de quem a utiliza. Mas, ao contrário de outras, a IA agora é capaz de planejar suas ações por conta própria. Estamos enfrentando riscos sem precedentes.

— Em sua opinião, qual seria o próximo passo dos modelos de IA em relação à teoria da mente? Que capacidades poderíamos ver surgir?

— A teoria da mente é uma das muitas capacidades humanas que a IA adquiriu recentemente. Ela também aprendeu a escrever poesia, reconhecer e expressar emoções, resolver problemas de raciocínio e expressar opiniões morais. As pessoas se perguntam se algum dia a IA será consciente e, na verdade, não vejo por que não deveria ser. A consciência surgiu neste planeta várias vezes: até onde sabemos, algumas aves e polvos são conscientes, embora nossos ancestrais comuns quase certamente não fossem. Portanto, pode ser que muito em breve a IA também seja consciente.

Outras perspectivas sobre a teoria da mente

Apesar dos resultados obtidos por Kosinski, muitos especialistas acreditam que os grandes modelos de linguagem ainda estão longe de igualar o entendimento humano em questões complexas. Neil Sahota, professor da Universidade da Califórnia em Irvine e consultor em inteligência artificial, afirmou:

“Os LLM demonstraram uma habilidade notável para compreender o contexto e simular aspectos da empatia, mas ainda falham ao enfrentar tarefas que exigem uma compreensão genuína das emoções e da motivação humana. Para atingir esse nível de profundidade, a IA precisaria ir além dos algoritmos e desenvolver uma verdadeira teoria da mente.”

Segundo Sahota, há quatro elementos que faltam à IA para atingir essa dimensão:

  1. Compreensão emocional: Os LLM podem imitar empatia, mas não sentem emoções nem compreendem os contextos emocionais humanos. A IA precisa de computação afetiva para se aproximar de uma verdadeira compreensão emocional.
  2. Adaptabilidade humana: Humanos adaptam suas decisões a novas situações com base em experiências prévias e intuição. Os LLM, por outro lado, são limitados por seus dados de treinamento e não conseguem se adaptar facilmente ao desconhecido.
  3. Raciocínio contextual: Os LLM não possuem a capacidade de captar nuances sociais e contextuais complexas. A IA multimodal, que processa sinais visuais, auditivos e ambientais, será um divisor de águas.
  4. Intencionalidade e autoconsciência: Humanos refletem e aprendem com seus erros. Os LLM não têm essa capacidade; apenas correlacionam dados sem um processo reflexivo interno.

A teoria (computacional) da mente está cada vez mais próxima

A teoria computacional da mente propõe que os processos mentais podem ser entendidos como operações de um computador, sugerindo semelhanças entre o cérebro humano e um processador. Alguns especialistas, como Fredi Vivas, preferem não atribuir qualidades humanas ao software, usando o termo “inteligência computacional”.

Kosinski conclui:

— Estamos gestando algo superior à mente humana. Se você se preocupa se seremos capazes de conter uma IA semelhante à humana, inteligente, ambiciosa, temperamental e consciente, então pense que, em breve, enfrentaremos uma IA com capacidades mentais que nem sequer podemos imaginar. Boa sorte a todos!

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