Carme Artigas: “A AI Act está aqui para ficar e o setor terá que se adaptar.”

Autor: Alberto Iglesias Fraga

Jornalista e escritor espanhol especializado em tecnologia e transformação digital. Trabalhou em diversos meios de comunicação importantes na Espanha, como ABC e El Mundo, cobrindo temas relacionados à inovação, economia digital e novas tecnologias. Seu trabalho se concentra em analisar como a tecnologia está transformando a sociedade, a economia e as empresas.

Economia | Economia o futuro do trabalho

10 Set, 2024

10 Set, 2024

A artífice do regulamento europeu de inteligência artificial defende a pertinência desta norma, que considera “equilibrada” e adotada “no momento exato”.

Quem é a nova Carme Artigas? Essa é a pergunta obrigatória que surge ao sentar-se novamente com essa prolífica empresária, política e assessora de prestígio internacional. Ex-diretora de Empreendedorismo e Incubadoras de Negócios no Barcelona Activa, ex-CEO do Ericsson Innova Venture Capital Fund ou fundadora e ex-CEO da Synergic Partners (posteriormente adquirida pela Telefónica). Seu currículo é tão extenso quanto profunda é a marca que deixou no ecossistema digital espanhol e europeu.

Mas sua aventura mais recente, a de secretária de Estado de Digitalização e Inteligência Artificial entre 2020 e 2023, é talvez a que mais a marcou de forma intensa. Seu perfil técnico, em conjunto com a vice-presidente Nadia Calviño, foi um impulso para lançar a pioneira lei das startups, a criação de um sandbox de IA, vários projetos e iniciativas na área de digitalização (Kit Digital ou a Carpeta Ciudadana, entre outros) e, sob a bandeira comunitária, liderar as negociações que levaram à AI Act, o regulamento europeu de inteligência artificial que abriu o caminho global para regulamentar essa tecnologia.

Voltando à pergunta original, quem é a nova Carme Artigas após deixar a política de linha de frente? “Não há uma nova, porque continuo fazendo a mesma coisa: trabalhar pelo desenvolvimento tecnológico para que ele chegue a todos de forma responsável”, responde.

Ela faz isso por meio de vários caminhos que parecem feitos sob medida para ela. Um deles, o acadêmico, como Senior Fellow no centro de pesquisa Belfer Center, da Harvard Kennedy School. Outro, o da divulgação, como palestrante de destaque em eventos como o Digital Enterprise Show 2024. O terceiro, não esquecer da política, neste caso como co-presidente do Órgão Consultivo de Alto Nível da ONU para a Inteligência Artificial.

“Tenho um enorme compromisso com esse trabalho e considero um privilégio; como algo que me permite cruzar muitos dos meus interesses e que está consumindo grande parte do meu tempo”, comenta sobre seu papel na ONU, que ela deixará antes do final do ano, quando apresentar as conclusões de seu trabalho na Assembleia Geral.

Não é surpresa que o tema central sobre o qual gira sua nova aventura profissional continue sendo o uso ético da inteligência artificial. Artigas agora aspira estabelecer um marco normativo internacional que garanta que a IA seja segura, confiável e contribua para o crescimento sustentável.

“O documento que elaboramos na ONU marca o início de um processo crucial para a governança global da IA”, comenta Artigas. “Este primeiro relatório, embora ainda geral e em desenvolvimento, se baseia na premissa de que não é suficiente que cada país regule a IA de forma independente. A governança global da IA é imprescindível para garantir que seus princípios fundamentais sejam respeitados em todo lugar.”

“Trabalhamos intensamente para articular diferentes processos que avançam em paralelo, realizamos três reuniões presenciais em Nova York, Dubai e Singapura, onde mais de 1.000 especialistas contribuíram para o desenvolvimento deste relatório, no qual se analisa o impacto da IA em vários setores como propriedade intelectual, saúde ou software de código aberto.”

Artigas reconhece que o documento que lidera tem apenas caráter de recomendações e que requer um consenso político ainda inexistente. “Só podemos agir dentro dos limites que os Estados nos permitem. É vital que essas propostas sejam aceitas pela Assembleia Geral”, acrescenta.

Além disso, é necessário envolver a sociedade nesse processo. “Não podemos permitir que esse debate se restrinja apenas a políticos e grandes empresas. A sociedade também precisa se preocupar com como a IA está sendo regulada e exigir de seus governos uma regulação adequada.”

Sem detalhar o relatório, seu principal valor está em harmonizar a atual diversidade de enfoques regulatórios em nível global. Com os Estados Unidos, China e Europa avançando em suas próprias agendas, surge a pergunta de como as Nações Unidas podem estabelecer um marco comum que reúna princípios e valores tão distintos.

“Acho que é crucial não confundir governança com regulação”, sublinha Artigas durante o encontro com este meio. “A governança global não se trata de impor regulamentos uniformes a todos, mas de garantir que haja mínimos comuns, como segurança e inclusão, que devem ser respeitados em qualquer lugar.”

Um dos principais problemas identificados pela protagonista é a falta de um fórum global unificado onde esses temas possam ser discutidos. “Atualmente, existem muitas iniciativas isoladas: a OCDE, a UNESCO, até agências regionais, mas não há um lugar que reúna os interesses dos 193 países que fazem parte da Assembleia Geral da ONU”, explicou. Essa fragmentação, segundo Artigas, exacerba as desigualdades digitais e cria um vácuo na governança global.

Com ambos os fatores em mente, fica clara a importância de estabelecer padrões mínimos a nível internacional. “Não podemos esperar que as regulações sejam idênticas na China, nos Estados Unidos, na Europa ou na África do Sul, mas devemos assegurar que haja interoperabilidade em termos de padrões e que os direitos humanos fundamentais sejam respeitados”, afirmou. Em sua visão, o direito internacional e os princípios das Nações Unidas devem ser o ponto de partida para qualquer normativa sobre IA.

Além disso, a ex-secretária de Estado chama a atenção para um tema crítico: a responsabilidade em caso de incidentes com a IA. “Hoje em dia, não há um marco claro sobre quem é responsável se ocorrer um incidente com IA em alguma parte do mundo. Isso é algo que nenhuma das iniciativas atuais aborda adequadamente”, adverte.

De todas as regulações, normas e padrões que estão surgindo em todo o planeta, por ora apenas uma é considerada como uma verdadeira lei que contempla o fenômeno da inteligência artificial em seu conjunto e à prova de futuro: a AI Act.

Esse regulamento europeu, em vigor desde este verão (ainda que com dois anos de prazo para sua adoção), busca garantir os valores e a visão do Velho Continente no uso dessa tecnologia, evitar os vieses e riscos de segurança que ela acarreta e, ao mesmo tempo, fomentar a inovação e o seu uso. Uma norma que foi viabilizada graças ao trílogo do passado dezembro, liderado pela própria Carme Artigas, no âmbito da presidência espanhola do Conselho Europeu.

Agora que é uma realidade, Artigas continua defendendo a necessidade e o momento da regulação, respondendo às críticas que questionam se a UE se apressou diante do avanço exponencial da IA. “A ideia da inteligência artificial surgiu em 1956, e passaram-se décadas sem regulação”, sublinha, apontando que tecnologias como o deep learning estão em desenvolvimento massivo desde 2014. “Tivemos tempo suficiente para identificar claramente onde estão os riscos e estabelecer princípios que orientem seu uso”, afirma, referindo-se à necessidade de regular não a tecnologia em si, mas suas aplicações.

A adoção da AI Act, segundo Carme Artigas, deve ser rápida e efetiva, aprendendo com as lições do Regulamento Geral de Proteção de Dados (GDPR). “Foi duro e custoso, especialmente para as pequenas e médias empresas”, reconhece, mas enfatiza que a transparência e o cumprimento das normativas são essenciais para que a IA seja aceita de forma confiável na Europa. Por isso, também insta as grandes empresas a não esperarem dois anos para cumprir a lei, pois o cumprimento antecipado poderia se converter em um selo de qualidade que diferencia seus produtos no mercado.

Contrariando as preocupações de que a regulação poderia sufocar a inovação, Artigas assegura que a AI Act contempla amplos espaços de flexibilidade, especialmente nas fases de pesquisa e desenvolvimento. “Não afeta o P&D nem os processos de treinamento antes do lançamento comercial”, explica, destacando que a lei permite ambientes desregulados para testes em cenários reais (os famosos sandbox), como no caso da condução autônoma.

Nesse sentido, também se mostra otimista quanto à adaptação do setor à nova regulação, que por ora está demonstrando um frente comum contra a AI Act (os últimos, os CEOs da Meta e da Spotify, em uma carta conjunta). “A resistência inicial é normal, mas a indústria sabe que adaptar-se não é tão custoso quanto parece”, comenta. Comparando com outros setores altamente regulados, como o bancário ou o alimentar, assegura que a regulação “não é um impedimento para a competitividade, mas sim uma garantia de qualidade e segurança para os consumidores”.

Seu tom é contundente diante das dúvidas e sua visão é claramente positiva em relação a essa norma. Carme Artigas considera que a AI Act é uma oportunidade para a Europa liderar no desenvolvimento de uma inteligência artificial que seja ética, segura e benéfica para todos. “Essa lei veio para ficar, e a indústria terá que se adaptar”, conclui, confiando que a clareza normativa permitirá à Europa adotar a IA de maneira mais rápida e efetiva.

Estar em um organismo como as Nações Unidas obrigou Carme Artigas a mudar o prisma que orientava suas decisões, de uma perspectiva europeia para uma muito mais global. Daí que ela enfatize a necessidade de uma abordagem coordenada e global a esse respeito e, inclusive, peça a criação de um painel permanente que avalie de forma contínua as evoluções, riscos e capacidades no campo da IA.

“Esse painel é essencial para assegurar que todas as vozes estejam representadas, especialmente num contexto em que nem todos os países têm igual acesso à infraestrutura tecnológica necessária”, introduz na conversa.

“Existem muitas iniciativas valiosas a nível global, como a declaração de Bletchley Park e os esforços da OCDE, que abordam aspectos específicos da IA. Não estamos dizendo que precisamos de uma agência internacional de inteligência artificial da noite para o dia, mas sim de uma coordenação efetiva que assegure que não estamos legislando num vácuo, e sim com base em um consenso científico atualizado”, esclarece.

E prossegue: “É necessário um marco de gestão de riscos e uma taxonomia comuns para garantir que todos os atores, desde as grandes potências até os países do sul global, estejam alinhados em como lidamos com os riscos associados à IA”.

Entretanto, há um elemento chave nesses avanços que continua sendo difícil de mudar: o setor privado. “A indústria está absolutamente dedicada a fazer as coisas da forma correta”, defende Artigas, que destaca que as grandes empresas tecnológicas já estão implementando planos de autocontrole. Contudo, a grande maioria da capacidade computacional, essencial para desenvolver IA avançada, continua concentrada em poucas mãos, o que cria uma lacuna significativa entre os países.

Artigas propõe uma abordagem multilateral, afastando-se do tradicional modelo de fornecedor-cliente internacional que poderia ser considerado uma forma de “colonização”. “O sul global não quer ser colonizado; quer ferramentas para competir em igualdade de condições”, enfatiza. Para isso, ela sugere a criação de um fundo de desenvolvimento global que permita a participação do Banco de Desenvolvimento e as contribuições do setor privado, não apenas em termos de financiamento, mas também fornecendo recursos como chips, capacidade computacional e horas de formação.

Nesse sentido, Artigas sublinha que a confiança e o acesso igualitário aos recursos são fundamentais para a adoção global da IA. “Se não houver confiança e um marco que garanta igualdade no acesso aos recursos, não poderemos aproveitar plenamente os benefícios da IA”, adverte. “Estamos diante de uma oportunidade única de fazer as coisas da maneira certa, de forma inclusiva e equitativa. Se conseguirmos coordenar esses esforços, podemos garantir que a IA beneficie toda a humanidade”, conclui.


Carme Artigas é uma especialista em tecnologia, inovação e transformação digital na Espanha. Atualmente, ocupa o cargo de Secretária de Estado de Digitalização e Inteligência Artificial do Governo da Espanha, um posto que desempenha desde janeiro de 2020. Nesse papel, lidera a estratégia digital do país, focando em áreas como a inteligência artificial, a proteção de dados, a cibersegurança e a digitalização da economia e da sociedade.

Autor: Alberto Iglesias Fraga

Autor: Alberto Iglesias Fraga

Jornalista e escritor espanhol especializado em tecnologia e transformação digital. Trabalhou em diversos meios de comunicação importantes na Espanha, como ABC e El Mundo, cobrindo temas relacionados à inovação, economia digital e novas tecnologias. Seu trabalho se concentra em analisar como a tecnologia está transformando a sociedade, a economia e as empresas.

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