HOWARD GARDNER: O Pai das Inteligências Múltiplas diante do desafio da Inteligência Artificial

Autor: Carlos Manuel Sánchez

Jornalista e escritor espanhol reconhecido pela sua capacidade de abordar temas complexos com clareza e profundidade. Colaborador regular de meios de comunicação social proeminentes, o seu trabalho abrange áreas como política, economia, história e cultura, com uma abordagem analítica que combina investigação rigorosa e narrativa envolvente.

Transumanismo

27 Jan, 2025

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Embora Howard Gardner não seja um de nossos pensadores habituais nem um convidado frequente, ele concedeu uma entrevista à XL, na pessoa de Carlos Manuel Sánchez, onde “o pai das inteligências múltiplas” se refere à inteligência artificial. Seus conceitos nos parecem de especial importância.

Este professor de Harvard revolucionou o mundo da educação com sua teoria das inteligências múltiplas: nossa mente é tão complexa que não pode ser reduzida a um número em um teste de coeficiente intelectual. Agora, com o avanço da inteligência artificial, ele prevê a chegada de uma nova espécie: os pós-humanos. “Talvez o Homo sapiens — diz ele — seja apenas um capítulo na história do planeta.”

Howard Gardner nasceu em Scranton (Pensilvânia) em 1943, no seio de uma família de refugiados judeus que haviam fugido da Alemanha nazista. Em Harvard, onde desenvolve sua carreira desde 1961, ocupa a cátedra John H. e Elisabeth A. Hobbs de Cognição e Educação. Além disso, é um dos fundadores do The Good Project, dedicado a promover a excelência ética na educação e no trabalho.

Gardner, considerado o psicólogo especializado em educação mais influente do mundo, causou um grande impacto em 1983 com uma ideia revolucionária: não existe apenas uma única inteligência, mas muitas formas diferentes de ser inteligente. Tradicionalmente, a inteligência era medida por meio de um único teste, o teste de coeficiente intelectual (QI): se você obtivesse mais de 120, era considerado um gênio; o normal era 100; e com menos de 80, necessitava de ajuda. Gardner identificou sete tipos distintos de inteligência: a linguística e a lógico-matemática (as únicas medidas pelo QI), mas também a musical, a espacial, a corporal-cinestésica (agilidade), a interpessoal (capacidade de se relacionar com os outros) e a intrapessoal (compreensão de si mesmo). Anos depois, ele acrescentaria uma oitava: a naturalista (interesse pela natureza).

“Os currículos escolares deveriam dedicar muito mais tempo às humanidades. Isso nos ajudará a garantir que o futuro não seja construído sobre nossas piores tendências.”

Sua teoria das inteligências múltiplas gerou uma grande divisão. Muitos psicólogos e educadores da velha guarda tentaram refutá-la. No entanto, milhares de professores em sala de aula reconheceram seu potencial, e milhões de alunos se beneficiaram: de repente, aquela menina que não se destacava em matemática, mas tinha um dom para organizar seus colegas, passou a ser reconhecida por sua alta inteligência interpessoal. Ou aquele menino que não ia bem em análise sintática, mas passava horas observando insetos, já não era mais considerado um fracasso escolar, e sim um futuro biólogo em potencial. A questão deixou de ser “quem é o mais inteligente?” e passou a ser “em que cada criança se destaca?”.

O fato de Gardner ser uma referência em Harvard ajudou-o a resistir às críticas. Quando seu colega Daniel Goleman popularizou o conceito de inteligência emocional, ficou evidente que a inteligência humana era muito mais complexa do que um simples número poderia captar. Agora, com a inteligência artificial transformando nosso mundo, as ideias de Gardner ganham uma nova relevância. O veterano professor questiona se a inteligência humana e a computacional poderão trabalhar juntas de maneira produtiva ou se, pelo contrário, gerarão o caos. “Afinal, se surgir um conflito entre o Homo sapiens e a Inteligência Artificial Geral, que entidade teria autoridade ou capacidade para mediar essa disputa?”, alerta ele.

XL. A inteligência humana já não está sozinha, mas ainda não sabemos se a inteligência artificial será nossa concorrente ou aliada. Em que ficamos?

Howard Gardner. A primeira coisa que precisamos fazer é repensar como usamos a palavra inteligência. A chegada da IA é um evento tão significativo quanto a invenção do alfabeto ou da imprensa. No entanto, os seres humanos nunca foram a única espécie inteligente neste planeta. Devemos considerar a inteligência dos animais e, talvez, até a de algumas plantas. E agora, sem dúvida, a inteligência computacional demonstrada por esses grandes modelos de linguagem, como o ChatGPT.

XL. Esses modelos já nos superam em muitos aspectos…

H.G. Isso não importa. Ainda jogamos xadrez, mesmo que os computadores nos derrotem facilmente. O importante não é se as máquinas nos superam, mas sim compreender quais são nossas capacidades únicas como seres humanos. E protegê-las!

“Vivemos tempos turbulentos que exigem um esforço extra. Precisamos desenvolver o pensamento crítico. Se isso significa limitar o acesso aos celulares na infância, sou a favor.”

XL. Mas se, no fim, uma superinteligência surgir e nos superar em tudo, não estaremos caminhando para a irrelevância?

H.G. Isso só acontecerá se permitirmos. Não é um problema tecnológico, mas uma decisão que devemos tomar como sociedade: queremos usar a IA para ampliar as capacidades humanas ou para fugir de nossas responsabilidades e deixar que ela tome decisões por nós?

XL. Suponhamos o melhor cenário, em que muitos humanos utilizem a IA para se beneficiar. Não deveríamos então revisar sua teoria das inteligências múltiplas e incluir a habilidade de aproveitar a IA?

H.G. Sim. Estamos analisando como seria uma inteligência colaborativa entre espécies. E é muito provável que o futuro nos leve a considerar “combinações de inteligências”, onde as capacidades humanas e computacionais se entrelaçam e se potencializam mutuamente. Além disso, esses sistemas se tornarão cada vez mais inteligentes e adquirirão habilidades que nem sequer podemos imaginar. Mais cedo ou mais tarde, é provável que sejam desenvolvidos sistemas híbridos: modelos de linguagem fundidos com tecido orgânico ou cérebros humanos com implantes de redes neurais.

XL. Nesse caso, o próprio conceito de humanidade não estaria em jogo?

H.G. Talvez o Homo sapiens seja apenas um capítulo na história do planeta e uma frase na história do universo. E talvez a transição para esse futuro pós-humano envolva a integração da tecnologia em nossos corpos e mentes. O desafio está em garantir que essa transformação seja positiva para a humanidade como um todo e que preserve os valores que consideramos essenciais.

XL. Receio que será difícil chegarmos a um consenso. Basta olhar para os direitos humanos: indiscutíveis na teoria, mas, na prática…

H.G. Como espécie, somos capazes do melhor e do pior. Mas não devemos subestimar o fato de que não apenas criamos os primeiros instrumentos musicais: Bach compôs suítes magníficas para violoncelo, e Yo-Yo Ma pode interpretá-las de forma esplêndida. Os currículos escolares deveriam dedicar muito mais tempo às humanidades: ensinar o que nos torna humanos, o que conquistamos, nossas maravilhosas criações. Isso nos ajudaria a construir o futuro sobre nossas maiores realizações, em vez de sobre nossos piores instintos.

XL. E o que vem depois?

H.G. Sejamos realistas: não somos o ápice glorioso da evolução. A ciência e a medicina já nos permitem alterar o genoma, melhorar ou eliminar características, criar novas. A tecnologia pode criar entidades que nos superarão em muito. Isso não significa que vamos desaparecer, mas também não garante que os pós-humanos serão nossos descendentes diretos. Gostaríamos de nos reconhecer neles, mas não sabemos se ainda seremos nós.

XL. Antes que esse cenário chegue, não lhe preocupa que usemos a IA como quem invoca o gênio da lâmpada e acabemos nos tornando acomodados?

H.G. Com certeza. Apenas um avestruz que enfia a cabeça na terra deixaria todo o pensamento para as máquinas. Precisamos educar as futuras gerações sobre como os algoritmos realmente funcionam, para que não sejam enganadas por seus produtos e recomendações, e para que saibam quando moderar seu uso ou até mesmo prescindir deles.

XL. Essa IA cada vez mais poderosa vai coexistir com gerações que nem sequer verificam o que ela diz, como se não se preocupassem muito se está errada ou se mente…

H.G. A raiz do problema está no uso equivocado da tecnologia, em transformá-la em um substituto da experiência humana. Quando se pede que listem os eventos mais importantes de suas vidas, muitos jovens não mencionam acontecimentos políticos, econômicos ou culturais; apenas as redes sociais. Porque lhes falta essa vivência real… Eles esperam que a vida funcione como um aplicativo de celular: rápida e eficiente, dizendo-lhes o que fazer e como se sentir. Mas a vida não funciona assim. Sempre há imprevistos, perdas… E superar as decepções é o que torna a vida valiosa.

XL. No entanto, apesar de serem nativos digitais, também não parecem muito preparados para não cair em fake news…

H.G. Então é hora de arregaçar as mangas! E não apenas os jovens. Eu me incluo nisso. Só porque há muita desinformação por aí, não devemos desanimar nem nos render. São tempos turbulentos que exigem um esforço extra. De todos nós.

XL. E o que podemos fazer?

H.G. Ajudá-los a desenvolver sua criatividade e pensamento crítico. A mente também precisa ir à academia. Se isso significa limitar o acesso aos celulares, especialmente na infância, sou a favor. A Austrália acabou de aprovar uma legislação nesse sentido. Mas os adultos ao redor também precisam fazer o mesmo. As crianças nunca ouvem o que você diz, mas sempre observam o que você faz… e o que você deixa de fazer.

XL. Quando uma criança pode gerar instantaneamente uma imagem ou corrigir seu texto com um clique, não se perde algo essencial no aprendizado?

H.G. Apenas se permitirmos que elas se tornem dependentes desses aplicativos; nesse caso, escolherão o caminho mais fácil. Mas olhe por outro ângulo: no século XVI, apenas algumas pessoas educadas na Europa tinham o potencial de se tornar um Leonardo da Vinci ou um Michelangelo. Hoje, milhões têm essa oportunidade, se escolherem aproveitá-la… A questão é como usamos essas ferramentas para expandir sua criatividade e desejo de explorar, e não para limitá-los.

“Dizer que um dispositivo é ético é um erro conceitual. A ética exige debate, princípios… As máquinas podem ser inteligentes, mas não sábias.”

XL. E quem vai ensiná-los? As próprias máquinas? Vamos criá-los com robôs?

H.G. Não, por favor! Prefiro seres humanos de carne e osso que amam as crianças. Os seres humanos aprendem, principalmente, com outros seres humanos, mesmo que sejam imperfeitos. Isso é algo que a religião, a literatura e a arte têm feito há séculos. E é o que fazem as figuras que nos inspiram.

XL. Hoje, quem inspira (ou deveria inspirar) são os influencers

H.G. Sim, e isso acontece em detrimento dos verdadeiros mentores. Um mentor exerce uma influência duradoura e pessoal, de um para um. Isso não é algo que possa ser distribuído entre milhares ou milhões de seguidores nas redes sociais. E um mentor não busca popularidade; ele tenta ser um exemplo e fazer o que é certo.

XL. É impossível usar o TikTok para educar?

H.G. Não estou dizendo isso… Os alunos precisam de um guia de boas influências que utilizem seus talentos e plataformas de forma construtiva. O que sinto falta são figuras inspiradoras, mesmo que já não estejam entre nós. Penso em Gandhi, Nelson Mandela, Madre Teresa… Mas quem temos hoje? Elon Musk? Que ninguém pense que Musk é a pessoa mais importante do planeta, porque ele não é.

XL. Houve uma época em que o Vale do Silício era uma fonte de inspiração…

H.G. Sim. Até mesmo Steve Jobs, um dos responsáveis por tudo isso, era alguém com inquietações que iam além do dinheiro. Ele se interessava por espiritualidade, buscava seu próprio caminho, valorizava a beleza.

“Aos meus netos, eu disse para não se esquecerem de que somos frágeis. Totalitarismos, mudanças climáticas, violência… Sem planeta, as discussões sobre inteligência serão irrelevantes.”

XL. O Vale do Silício não está impondo sua agenda, queiramos ou não?

H.G. O curso da história não pode ser controlado, nem devemos tentar fazê-lo; os avanços acontecem… O mais importante é como reagimos ao que está acontecendo, identificar os riscos e enfrentá-los.

XL. Você acha que a IA pode adquirir consciência?

H.G. Esse é um tema altamente especulativo. Como provar isso? Os sistemas computacionais podem ser treinados para fingir consciência. Para os seres humanos, a consciência é a mais impressionante e, ao mesmo tempo, a mais enigmática de nossas capacidades. Há razões para acreditar que apenas nos últimos dez mil anos os membros da nossa espécie desenvolveram o tipo de consciência e autoconsciência que hoje damos como certa.

XL. Devemos permitir que a IA tome decisões éticas, que defina o que é certo e o que é errado?

H.G. Dizer que um dispositivo é ético é um erro conceitual. A ética requer debate entre seres humanos dentro de uma comunidade, com princípios e consequências apropriadas. Podemos programá-la para seguir certos padrões, mas a ética envolve questões profundas para as quais não há respostas simples. É aí que entram o diálogo humano, o julgamento e a sabedoria. As máquinas podem ser inteligentes, mas dizer que são sábias é outro erro categórico.

XL. Você tem cinco netos. Preocupa-se com o futuro deles?

H.G. Como não me preocuparia? Quando fiz 80 anos, entreguei a cada um deles um testamento ético assinado. Espero que, muito tempo depois que eu me for, eles se lembrem da nossa pequena cerimônia e valorizem aquilo que seu avô considerava importante… mesmo que nem sempre concordem com o que pensei e escrevi.

XL. E qual é a sua mensagem para as futuras gerações?

H.G. Quero que dominem as novas tecnologias, mas que não se esqueçam de que somos uma espécie frágil. Me preocupa a ascensão do fascismo, dos totalitarismos e das forças antidemocráticas ao redor do mundo. Se não enfrentarmos as mudanças climáticas, se não controlarmos as armas, se não resistirmos à violência e à guerra, não haverá mais um planeta – e todas as nossas discussões sobre educação e inteligência se tornarão irrelevantes.

Autor: Carlos Manuel Sánchez

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1 Comment

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