Piketty, Varoufakis ou Acemoglu alertam que o confronto entre a rede social X e Brasília é mais um capítulo do “preocupante” esforço global das grandes empresas para controlar o desenvolvimento digital dos países.
Nota da Redação do Future Lab: O tema da soberania digital do Brasil, que é extremamente importante, também está impregnado de questões ideológicas. Nenhuma das partes envolvidas é inocente, nem o Brasil representado por Alexandre de Moraes, juiz da Suprema Corte, que não é exatamente um defensor ferrenho da liberdade de expressão, nem seu adversário pessoal, Elon Musk.
Por outro lado, alguns militantes, como o ex-ministro das Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, extraordinário escritor que deve ser considerado em todos os aspectos relacionados e cujo último livro recomendamos (Tecnofeudalismo), têm uma clara orientação marxista. Por isso, entendemos que os temas em questão devem ser analisados com cautela e com os filtros racionais necessários.
Estamos diante de uma enorme batalha global entre aqueles que reivindicam uma “soberania digital” – algo absolutamente lógico e que não deve ser politizado – e o verdadeiro “feudalismo” das grandes empresas de tecnologia, que já foi demonstrado como uma realidade extremamente perigosa perante autoridades parlamentares da União Europeia e dos Estados Unidos.
Por outro lado, a “liberdade de expressão” das correntes marxistas e filo-marxistas também tem sido historicamente demonstrada como igualmente perigosa. Será necessário seguir um caminho do meio com muito cuidado. Prof. Dr. Ricardo Petrissans Aguilar.
Os ecos da proibição da rede social X no Brasil ainda ressoam três semanas depois. Motivado pelo “reiterado descumprimento de ordens judiciais” por parte da plataforma comandada por Elon Musk, que se recusou a bloquear perfis que contribuem para a “divulgação massiva de discursos nazistas, racistas, fascistas, de ódio e antidemocráticos”, o fechamento forçado da plataforma foi interpretado como um golpe na mesa da sociedade contra os excessos das gigantes tecnológicas. Mas ainda resta saber quais serão os efeitos reais desse golpe.
Cerca de cinquenta economistas, acadêmicos e ativistas publicam nesta terça-feira uma carta aberta na qual exigem o fim da pressão exercida pelas “grandes empresas de tecnologia” sobre Brasília para tentar restringir a implementação de várias iniciativas voltadas para defender sua soberania digital.
“Queremos expressar nossa profunda preocupação com os ataques contínuos das grandes empresas de tecnologia e seus aliados contra a soberania digital do Brasil”, começa o documento. A disputa do governo brasileiro com Elon Musk é apenas o exemplo mais recente de um esforço mais amplo para “restringir a capacidade das nações soberanas de definir uma agenda de desenvolvimento digital livre do controle das megacorporações sediadas nos EUA”, destacam os signatários, entre os quais estão economistas como Thomas Piketty, que sacudiu a disciplina há uma década com O capital no século XXI; Yanis Varoufakis, o efêmero ministro grego das Finanças que lidou com o resgate do país; o especialista em desigualdade Daron Acemoglu ou Mariana Mazzucato. Outros nomes de destaque que apoiam o texto são Shoshana Zuboff, autora de A era do capitalismo de vigilância; o ensaísta Evgeny Morozov e a jurista Renata Ávila.
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Os acadêmicos ressaltam que o Brasil se tornou a “frente-chave” no “conflito global entre as corporações tecnológicas e aqueles que buscam construir um panorama digital democrático e centrado nas pessoas, focado no desenvolvimento social e econômico”. O presidente Lula da Silva, diz o documento, persegue a independência digital de seu país, que pretende alcançar reduzindo sua dependência de entidades estrangeiras para dados, capacidades de inteligência artificial (IA) e infraestrutura digital, e obrigando as grandes empresas tecnológicas “a pagar impostos justos, cumprir as leis locais e prestar contas pelas externalidades sociais de seus modelos de negócios”.
A resposta a esse impulso regulatório brasileiro tem sido o desafio de algumas tecnológicas, como é o caso do X, e as ameaças de outras com o objetivo de “minar iniciativas que buscam a autonomia tecnológica” do país. Os signatários do documento acreditam que o que está acontecendo lá nos diz respeito a todos. “Mais do que um aviso ao Brasil, [as ações das grandes tecnológicas] enviam uma mensagem preocupante ao mundo: que os países democráticos que buscam independência do domínio das grandes empresas tecnológicas correm o risco de sofrer interrupções em suas democracias, com algumas corporações apoiando movimentos e partidos de extrema direita”.
“Exigimos que as grandes empresas tecnológicas cessem suas tentativas de sabotar as iniciativas do Brasil voltadas para o desenvolvimento de capacidades independentes em inteligência artificial, infraestrutura pública digital, gestão de dados e tecnologia em nuvem”, diz a carta, que não especifica a quais sabotagens se refere. Um dos signatários do documento aponta para a AWS, empresa filial da Amazon, que manteve há três semanas uma reunião com representantes do governo para oferecer uma proposta de serviço para apoiar o projeto de nuvem soberana no qual Brasília está trabalhando. “As grandes empresas tecnológicas não apenas controlam o mundo digital, mas também fazem lobby e operam contra a capacidade do setor público de criar e manter uma agenda digital independente”, lê-se no comunicado apresentado hoje.
Da Exceção Europeia à Americana:
O Brasil, país anfitrião da cúpula do G20 em novembro, apresentou em julho seu plano de IA, que prevê um investimento de 4 bilhões de dólares nos próximos dez anos e que, sob o slogan IA para o Bem de Todos, contempla a regulamentação dessa tecnologia para impor limites claros e garantir que seu desenvolvimento seja inclusivo e sustentável. O governo também está implementando um programa para estabelecer uma infraestrutura nacional de computação em nuvem.
O caso brasileiro é mais uma confirmação de que o ímpeto regulatório em torno da tecnologia não é exclusividade europeia. A ambiciosa arquitetura jurídica da UE em matéria digital, que será concluída em 2026, quando o Regulamento de IA entrar em vigor, inspirou iniciativas legislativas em alguns estados dos EUA e em outros países. Ainda nesta semana, será divulgado o relatório sobre governança da IA, no qual a ONU vem trabalhando há um ano e meio.
“Este é um momento crucial para o mundo. Precisamos de uma abordagem independente para reivindicar a soberania digital e o controle sobre nossa esfera digital pública”, conclui o documento.
Texto da Carta mencionada no cabeçalho:
Carta Pública: Contra o Ataque das Grandes Tecnológicas às Soberanias Digitais
Os abaixo-assinados desejam expressar nossa profunda preocupação com os contínuos ataques das grandes empresas tecnológicas e seus aliados à soberania digital do Brasil. A disputa do Brasil com Elon Musk é apenas o exemplo mais recente de um esforço mais amplo para restringir a capacidade das nações soberanas de definir uma agenda de desenvolvimento digital livre do controle das megacorporações sediadas nos Estados Unidos.
No final de agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal do Brasil proibiu [trecho faltando]. Posteriormente, o presidente Lula da Silva deixou clara a intenção do governo brasileiro de buscar a independência digital: reduzir a dependência do país de entidades estrangeiras para dados, capacidades de inteligência artificial e infraestrutura digital, além de promover o desenvolvimento de ecossistemas tecnológicos locais. Em conformidade com esses objetivos, o Estado brasileiro também pretende obrigar as grandes empresas tecnológicas a pagar impostos justos, cumprir as leis locais e prestar contas sobre as externalidades sociais de seus modelos de negócio, que frequentemente promovem violência e desigualdade.
Esses esforços encontraram resistência por parte do proprietário do X e de líderes da extrema-direita, que se dizem defensores da democracia e da liberdade de expressão. Mas, precisamente porque o espaço digital carece de acordos regulatórios internacionais e democraticamente decididos, as grandes empresas tecnológicas operam como governantes, determinando o que deve ser moderado e o que deve ser promovido em suas plataformas.
Além disso, o X e outras empresas começaram a se organizar e a mobilizar seus aliados, dentro e fora do país, para enfraquecer as iniciativas que visam à autonomia tecnológica do Brasil. Mais do que um alerta ao Brasil, suas ações enviam uma mensagem preocupante ao mundo: que os países democráticos que buscam independência do domínio das Big Tech correm o risco de ver suas democracias ameaçadas, com algumas dessas empresas apoiando movimentos e partidos de extrema-direita.
O caso brasileiro tornou-se o principal campo de batalha na evolução do conflito global entre as grandes corporações tecnológicas e aqueles que buscam construir um panorama digital democrático e centrado nas pessoas, com foco no desenvolvimento social e econômico.
As grandes empresas tecnológicas não apenas controlam o mundo digital, mas também exercem pressão e atuam contra a capacidade do setor público de criar e manter uma agenda digital independente, baseada em valores, necessidades e aspirações locais. Quando seus interesses financeiros estão em jogo, elas não hesitam em colaborar com governos autoritários. O que precisamos é de um espaço digital suficientemente livre para que os Estados possam direcionar o desenvolvimento tecnológico, colocando as pessoas e o planeta à frente dos lucros privados ou do controle estatal unilateral.
Todos aqueles que defendem os valores democráticos deveriam apoiar o Brasil em sua busca pela soberania digital. Exigimos que as grandes empresas tecnológicas cessem seus esforços para sabotar as iniciativas do Brasil voltadas à construção de capacidades independentes em inteligência artificial, infraestrutura pública digital, gestão de dados e tecnologia em nuvem. Esses ataques não apenas prejudicam os direitos dos cidadãos brasileiros, mas também minam as aspirações mais amplas de qualquer nação democrática em alcançar soberania tecnológica.
Também fazemos um apelo ao governo brasileiro para que se mantenha firme na implementação de sua agenda digital e denuncie as pressões externas. O sistema das Nações Unidas e os governos ao redor do mundo deveriam apoiar esses esforços. Este é um momento crucial para o mundo. Uma abordagem independente para reivindicar a soberania digital e o controle sobre nossa esfera pública digital não pode mais esperar.
Além disso, há uma necessidade urgente de desenvolver, no âmbito da ONU, princípios básicos para a regulamentação transnacional do acesso e uso de serviços digitais. Ao mesmo tempo, é fundamental promover ecossistemas digitais que coloquem as pessoas e o planeta à frente dos lucros, para evitar que esse cenário de submissão às Big Tech se torne uma prática comum em outros territórios.
Anita Gurumurthy, TI para a Mudança
Çağrı Çavuş, SOMO
Professora Adjunta Cecilia Rikap, University College London, IIPP e CONICET
Prof. Cédric Durand, Universidade de Genebra
Prof. CP Chandrasekhar, IDEA e PERI, UMass
Dr. Cory Doctorow (hc), autor, ativista, jornalista
Prof. Cristina Caffarra, University College London, Concurso CEPR RPN
Prof. Daron Acemoglu, MIT Economia
David Adler, Internacional Progressista
Ekaitz Cancela, Centro para o Avanço da Imaginação Infraestrutural (CAII)
Prof. Associado Edemilson Paraná, Universidade LUT
Prof. Emiliano Brancaccio, Universidade de Sannio
Dr. Evgeny Morozov, autor e produtor de “The Santiago Boys” e “A Sense of Rebellion”
Professora Adjunta Francesca Bria, University College London, IIPP e Stifung Mercator
Prof. Gabriel Zucman, Escola de Economia de Paris e UC Berkeley
Prof. Helena Martins, Universidade Federal do Ceará
Prof. Jason Hickel, ICTA-UAB e LSE
Dr. Jathan Sadowski, Universidade de Monash
Prof. Jayati Ghosh, Universidade de Massachusetts Amherst, Departamento de Economia
Dr. Joel Rabinovich, King’s College de Londres
Prof. José Graziano da Silva – Instituto Fome Zero – ex-Diretor Geral da UNFAO
Prof. José van Dijck, Universidade de Utrecht
Prof. Juan Martín Graña, CONICET e Universidade Nacional de San Martín
Prof. Julia Cagé, Sciences Po Paris, Departamento de Economia
Prof. Marcela Amaro, Universidade Nacional Autônoma do México
Prof. Marcos Dantas, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Margarita Olivera, Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro
Prof. Mariana Mazzucato, University College London, autora de Mission Economy
Margarida Silva, SOMO
Dra. María Farrell, escritora
Marietje Schaake, Universidade de Stanford, autora de The Tech Coup
Prof. Martín Becerra, CONICET e Universidade de Buenos Aires
Prof. Martín Guzmán, Escola de Assuntos Públicos e Internacionais (SIPA), Universidade de Columbia
Nandini Chami, TI para a Mudança
Dr. Niall Reddy, Universidade Wits
Prof. Nick Couldry, Escola de Economia de Londres
Dr. Nick Srnicek, King’s College de Londres
Prof. Paola Ricaurte Quijano, Tecnológico de Monterrey
Dr. Paolo Gerbaudo, Universidade Complutense de Madri
Paris Marx, apresentador de A tecnologia não nos salvará
Prof. Phoebe Moore, Universidade de Essex
Dr. Raffaele Giammetti, Universidade de Cassino e Sul do Lácio
Renata Ávila, CEO – Open Knowledge Foundation, afiliada ao CIS no CNRS França
Robin Berjon – Tecnólogo em Governança
Rodrigo Fernández, SOMO
Prof. Sergio Amadeu da Silveira – Universidade Federal do ABC
Prof. Shoshana Zuboff, autora de A Era do Capitalismo de Vigilância: A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder
Sofía Scasserra, Instituto Transnacional (TNI)
Prof. Stefano Lucarelli, Universidade de Bérgamo
Prof. Thomas Piketty, Escola de Economia de Paris e EHESS
Prof. Ulises Mejías, Universidade Estadual de Nova York
Prof. Ugo Pagano, Universidade de Siena
Prof. Wolfgang Streeck, Instituto Max Planck para o Estudo das Sociedades
Yanis Varoufakis, Secretário-Geral, MeRA25
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