O tema da Inteligência Artificial, com seu enorme alcance e o pouco que, na realidade, sabemos – em muitos casos ainda estamos em uma fase intuitiva – gerou uma autêntica enxurrada de estudos, opiniões, controvérsias e debates acalorados que praticamente acontecem diariamente.
Nosso Laboratório entende que um dos melhores serviços que pode prestar a todas as pessoas e organizações que acompanham nossos trabalhos é oferecer uma Série escolhida daquelas opiniões, posições e debates, levados praticamente ao dia em que acontecem, para manter genuinamente informados aqueles que estão atentos ao que está acontecendo e à nossa visão.
Certamente, o Laboratório está trabalhando em seu Microlab de Inteligência Artificial e oportunamente divulgará suas conclusões e percepções, mas a urgência do tema não admite demasiados atrasos. Essa é a razão pela qual hoje inauguramos uma Série, a de Inteligência Artificial, que esperamos seja o fermento de análise, meditação e conclusões sobre a projeção que um tema dessa envergadura nos obriga a abordar. Ninguém, nem governos, nem organismos internacionais, nem organismos regionais, think tanks e indivíduos podem permanecer indiferentes à sua evolução. Como sempre, esperamos que nosso serviço possa ser útil.
FLAVIA COSTA, PESQUISADORA DO CONICET: OS INDIVÍDUOS MAQUÍNICOS.
A pesquisadora do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas da República Argentina, Flavia Costa, propõe em seus últimos trabalhos algumas ideias extremamente interessantes sobre “nosso interlocutor”, a Inteligência Artificial. Trata-se de uma visão produto de uma prolongada carreira de investigações e publicações reflexivas sobre nossa relação como humanos com o que ela denomina de “indivíduos maquinicos”. É adicionalmente muito interessante como a autora vincula as ideias de Alan Turing com alguns comportamentos desenvolvidos por fórmulas evolutivas da inteligência artificial. E propõe, mais uma vez, que é necessário que em nossa região comecemos a estudar o tema e a buscar o debate científico, para não ficarmos, como é habitual, atrasados e sermos uma espécie de vagão de cauda dos países desenvolvidos.
Já se fala de “indivíduos maquínicos” pela inteligência artificial: os trabalhos desenvolvidos por Flavia Costa buscam explicar como esses indivíduos se relacionam com os humanos. Costa defende que as máquinas hoje podem fazer o mesmo que os humanos, mas de maneira diferente. A pergunta que surge imediatamente é: devemos nos preocupar?
Pouco antes do início da Segunda Guerra Mundial, o gênio britânico Alan Turing desenvolveu um dispositivo que seria conhecido simplesmente como “Máquina de Turing”. Não só se tornou a chave para decifrar os códigos criptografados de comunicação do nazismo, mas também é um invento precursor da informática moderna.
Muitas décadas depois, a pesquisadora Flavia Costa remeteu aquele desenvolvimento para trazê-lo ao presente e explicar a inteligência artificial: “quando Turing inventou sua máquina, disse ‘esta não é uma máquina, na verdade é uma máquina universal, é a máquina que pode ser todas as máquinas’. E algo da inteligência artificial é assim: é uma tecnologia que, como o que faz é reproduzir linguagem, faz todas aquelas coisas que uma linguagem pode fazer. E eu diria que os humanos fazemos tudo com a linguagem”.
A Dra. Flavia Costa é autora – entre outras obras – de “Tecnoceno: algoritmos, biohackers e novas formas de vida”. O objetivo da obra é tentar compreender essa nova tecnologia e os desafios que ela implica: “Inteligência Artificial é como um grande guarda-chuva, mas que envolve todas aquelas tecnologias que automatizam os processos que nós seres humanos fazemos, usando dados, informações”, explica. “Nos últimos entre 10 e 15 anos, houve duas grandes novidades: a capacidade de lidar com enormes volumes de dados, por um lado. E o aprendizado automático ou aprendizado maquínico, que é a verdadeira novidade, por outro. As máquinas podem aprender por si mesmas”.
A combinação dessas duas novidades faz com que as máquinas, por meio dos novos resultados que vão obtendo e algoritmos de propagação para trás, de recuperação de erros, recomeçam o cálculo a partir das novas descobertas. Através das sintaxes, produzem sentido. Aprendem.
Isso não significa que as máquinas se humanizem, porque não se trata – ou não deveria se tratar de imitar o ser humano, tema espinhoso e perigoso – de duplicar o indivíduo, mas o resultado obtido. Dizendo de uma forma mais simples, trata-se de as máquinas poderem fazer o mesmo que os seres humanos fazem, mas não da mesma maneira.
Entre outras coisas, isso nos leva a uma das discussões mais fortes e importantes às quais estamos assistindo. Vamos colocá-la da seguinte forma: se a inteligência artificial usar tudo o que foi escrito ao longo de séculos, se puder combiná-lo de uma maneira inteligente, mas não é realmente o criador, a quem atribuímos a autoria. Não é de forma alguma um tema menor, porque ataca um tema central que parecia resolvido jurídica e consensualmente desde há séculos. Certamente, este é um dos temas que a irrupção em massa da Inteligência Artificial nos coloca à consideração.
Em algumas revistas científicas internacionais, já está sendo aceita a coautoria com o ChatGPT, por exemplo. Enquanto se atribua essa fonte de formação do artigo, já um autor é esse método, é esse procedimento. Precisamos ser mais precisos, ver se é autor, se é bibliografia, onde o colocamos, ou se é outra coisa distinta. Efetivamente começa a se dissolver essa unidade forte: o indivíduo que é o autor. Começa a se gerar uma nova relação entre indivíduos humanos vivos e indivíduos maquínicos, que são outra coisa.
Em consequência, a pergunta que deveríamos nos fazer é o que é um indivíduo maquínico, pelo menos na concepção da Doutora Costa. Esse indivíduo é algo mais do que um elemento maquínico, do que uma ferramenta pontual. Um indivíduo já é uma ferramenta mais sofisticada que é capaz de elaborar e realizar tarefas de maneira autônoma.
Esses novos desenvolvimentos trazem desafios no que diz respeito ao trabalho. Costa entende que “esses indivíduos” devem ser considerados como aqueles que realizam atividades que substituem “o maquinismo anterior”, os trabalhos muito tediosos, duros para o corpo, agressivos. A incorporação de tecnologia implicou desemprego, mas também aliviou o impacto físico em tarefas como a mineração. A diferença é que as novas máquinas chegam agora para realizar tarefas que não são necessariamente tediosas, até tarefas que são apreciadas, como escrever, traduzir, pesquisar, aprender.
Outro tema, de muitos desafios que a Dra. Costa nos propõe, e que está no centro das discussões gerais atuais, é o papel da inteligência artificial na educação. Certamente, temos “bandos”, aqueles que a veem como uma espécie de ameaça e que querem impor limites estritos – isso é, sem dúvida, ignorar a penetração e a potência da tecnologia – e os que a veem como um instrumento no qual apoiar-se e que possivelmente dará um suporte adicional à educação. Neste comentário, não podemos esquecer que muitas vezes a disponibilidade da tecnologia para alguns e não para outros, além de ser um elemento de desenvolvimento, também é um elemento que alimenta brechas que precisamos solucionar.
Sobre esse ponto, Costa aponta que há países inteiros ou cidades que proibiram o chat para a tarefa educacional. A Itália é o caso mais extremo. Nova York proibiu em todas as instituições educativas o uso do ChatGPT e Hong Kong também. É como o impacto da calculadora na nossa geração: primeiro é preciso aprender a fazer as operações matemáticas e depois usar a calculadora. Agora a calculadora entra no terceiro, quarto, quinto grau. Precisamos ver como isso entra e em que grau, de que maneira, na educação, e de que forma – sempre limitada na realidade, como podemos gerenciá-la.
Aos ambientes de trabalho e educacionais se soma o desafio normativo, que até agora não existe e não se sabe quem ou como determinará o novo marco legal para essas tecnologias.
“Temos que pensar tudo”, definiu Costa, e acrescentou que “temos que trabalhar como sempre fizemos, comparativamente: ver o que estão fazendo na União Europeia ou nos Estados Unidos ou no Oriente. Em nossa região, a discussão precisa acontecer rapidamente. Precisamos ser imaginativos.”
[i] Flavia Costa é Doutora em Ciências Sociais pela Universidade de Buenos Aires, na qual, desde 1995, é docente do Seminário de Informática e Sociedade, atualmente como Professora Associada. Licenciada em Ciências da Comunicação por essa mesma Faculdade. Pesquisadora Adjunta do Conselho Nacional de Pesquisas Científicas e Técnicas (CONICET). É membro do grupo editor da revista Artefacto. Pensamentos sobre a técnica, bem como do coletivo Ludion – Exploratório argentino de poéticas/políticas tecnológicas. Na última década, traduziu em colaboração a obra de Giorgio Agamben para o espanhol. Seu tema central de pesquisa é a perspectiva da modernidade como um duplo processo tendencial de tecnificação e politização da vida. Nesse âmbito, desenvolveu a noção de “formas de vida tecnológicas”, cunhada originalmente pelo sociólogo britânico Scott Lash, para analisar o modo de existência contemporâneo na interseção entre biopolíticas e biotecnologias.
[ii] Alan Mathison Turing (Paddington, Londres; 23 de junho de 1912 – Wilmslow, Cheshire; 7 de junho de 1954) foi um matemático, lógico, informático teórico, criptógrafo, filósofo e biólogo teórico britânico.
É considerado um dos pais da ciência da computação e precursor da informática moderna. Forneceu uma formalização influente dos conceitos de algoritmo e computação: a máquina de Turing. Formulou sua própria versão, que hoje é amplamente aceita como a tese de Church-Turing (1936).
Durante a Segunda Guerra Mundial, trabalhou na decodificação dos códigos nazistas, particularmente os da máquina Enigma, e, por um tempo, foi o diretor da seção Naval Enigma de Bletchley Park. Estima-se que seu trabalho tenha encurtado a duração da guerra em dois a quatro anos. Após a guerra, projetou um dos primeiros computadores eletrônicos programáveis digitais no Laboratório Nacional de Física do Reino Unido e, pouco depois, construiu outra das primeiras máquinas na Universidade de Manchester.
No campo da inteligência artificial, é mais conhecido pela concepção do Teste de Turing (1950), um critério segundo o qual se pode julgar a inteligência de uma máquina se suas respostas no teste forem indistinguíveis das de um ser humano.
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