Uma empresa de IA gera em laboratório 500 milhões de anos de evolução até encontrar uma proteína fluorescente artificial.

Autor: JAVIER YANES

Javier Yanes é jornalista, biólogo e doutor em Bioquímica e Biologia Molecular. Antes de se dedicar ao jornalismo, trabalhou em pesquisa no Centro Nacional de Biotecnologia, onde publicou 19 estudos científicos e revisões.

Transumanismo

6 Fev, 2025

6 Fev, 2025

Os cientistas se perguntam se a evolução poderia ter seguido um caminho diferente. Por exemplo, era inevitável o surgimento do ser humano, ou somos o resultado de uma série de coincidências naturais que poderiam não ter ocorrido, resultando em um mundo alternativo? Não há uma resposta definitiva, mas hoje a inteligência artificial (IA) pode realizar experimentos evolutivos. Um deles, publicado esta semana na revista Science, revela que, no design de um tipo de proteína, existiam outras rotas possíveis que a natureza não explorou. E essa tecnologia pode fornecer pistas valiosas para a criação de novas terapias e outras aplicações.

Em seu livro de 1989, A Vida Maravilhosa, o biólogo evolutivo Stephen Jay Gould propôs um experimento mental: se a fita da evolução da vida na Terra pudesse ser rebobinada para voltar ao início e começar de novo, o resultado seria o mesmo que conhecemos ou completamente diferente? Gould argumentava a favor da segunda hipótese: em uma nova rodada, usando a analogia dos videogames, a evolução teria seguido um caminho muito distinto e os humanos não existiriam. “Reproduza a fita um milhão de vezes… e duvido que algo como o Homo sapiens pudesse evoluir novamente”, escreveu.

A tese de Gould tem sido amplamente debatida desde então, com opiniões que favorecem o determinismo e outras que defendem a contingência. Em seu conto de 1952, O Som do Trovão, o escritor de ficção científica Ray Bradbury narrou como um viajante do tempo que pisava em uma borboleta na época dos dinossauros mudava o rumo do futuro. Gould expressava essa mesma ideia: “Altere qualquer evento inicial, mesmo que de forma muito sutil e sem aparente importância naquele momento, e a evolução seguirá por um caminho totalmente diferente”.

Os cientistas têm investigado essa questão por meio de experimentos que tentam recriar a evolução em laboratório ou na natureza, ou comparando espécies que surgiram em condições semelhantes. Hoje, existe um novo caminho: a IA. Em Nova York, um grupo de antigos pesquisadores da Meta — empresa-mãe das redes sociais Facebook, Instagram e WhatsApp — fundou a EvolutionaryScale, uma startup de IA focada em biologia. O sistema ESM3 (EvolutionaryScale Model 3), criado por essa empresa, é um modelo generativo de linguagem; um tipo de plataforma à qual pertence o famoso ChatGPT, mas o ESM3 não gera textos, e sim proteínas, os blocos fundamentais da vida.

O ESM3 é alimentado por dados de sequência, estrutura e função de proteínas existentes para aprender a linguagem biológica dessas moléculas e criar novas. Seus criadores o treinaram com 771 bilhões de pacotes de dados gerados a partir de 3,15 bilhões de sequências, 236 milhões de estruturas e 539 milhões de características funcionais, totalizando mais de um trilhão de teraflops (uma unidade de medida do desempenho computacional), representando o maior poder de computação já utilizado na biologia, segundo a própria empresa.

“ESM3 dá um passo em direção a um futuro da biologia, onde a IA é uma ferramenta para construir desde os primeiros princípios, da mesma forma que construímos estruturas, máquinas e microchips”, afirma Alexander Rives, cofundador e chefe científico da EvolutionaryScale, além de diretor do novo estudo. Sua visão é que a biologia é a tecnologia mais avançada já criada e que é programável, pois utiliza um alfabeto comum: o código genético, que se traduz em aminoácidos, os blocos de construção das proteínas. “O ESM3 entende todos esses dados biológicos, os traduz e os fala fluentemente para usá-los como ferramenta generativa.”

Rives e seus colaboradores aplicaram o ESM3 ao problema de criar uma nova proteína fluorescente verde (Green Fluorescent Protein, GFP). A GFP é uma proteína natural que brilha em verde sob luz ultravioleta e é amplamente usada na pesquisa científica como marcador. A primeira foi descoberta em uma água-viva, mas outras versões existem em corais e anêmonas. Os cientistas treinaram o ESM3 para criar uma nova GFP, e o resultado os surpreendeu: uma proteína fluorescente, que chamaram de esmGFP, com apenas 58% de semelhança com a mais próxima conhecida — o que, segundo os pesquisadores, equivale a simular 500 milhões de anos de evolução. O ESM3 agora está disponível para a comunidade científica como uma nova ferramenta para o design de proteínas com funções terapêuticas, aplicações ambientais e outros usos.

Assim, a IA encontrou um novo caminho que a natureza poderia ter seguido há 500 milhões de anos, mas que, por razões desconhecidas, ignorou. Rives e seus colaboradores explicam que apenas algumas poucas mutações na GFP podem destruir sua fluorescência. No entanto, o ESM3 descobriu um novo espaço de proteínas fluorescentes que poderiam ter existido, mas não existiram: “Sob essas sequências existe uma linguagem fundamental da biologia das proteínas que pode ser compreendida usando modelos de linguagem”.

Segundo Jonathan Losos, professor da Universidade de Washington que estuda a questão do “rebobinar” da evolução observando espécies na natureza, “este estudo é um exemplo brilhante de que existem muitas maneiras pelas quais a evolução poderia ter ocorrido”. Losos considera os resultados do estudo como uma confirmação da contingência defendida por Gould. Essa visão também é compartilhada por Zachary Blount, professor da Universidade Estadual de Michigan, que demonstrou a contingência da evolução em um famoso experimento de cultivo de bactérias iniciado em 1988 por seu antigo supervisor, Richard Lenski, e que continua até hoje após mais de 80.000 gerações.

“O estudo mostra que há possibilidades biológicas viáveis que (acreditamos) não evoluíram na Terra, sugerindo caminhos genuínos que a evolução poderia ter tomado, mas não tomou porque a história necessária não aconteceu”, comenta Blount. No entanto, ele adverte que também existe um certo grau de determinismo na natureza; afinal, no experimento com o ESM3, ainda há 42% de semelhança com outras GFP. Blount não acredita que a IA vá resolver de vez a questão do “rebobinar” da evolução, mas reconhece que ajudará a entender o que é contingente, o que não é e por quê: “Ela nos fornece maneiras de explorar o espectro das possibilidades biológicas, permitindo-nos comparar o que é biologicamente possível com o que existe ou já existiu”.


Autor: JAVIER YANES

Autor: JAVIER YANES

Javier Yanes é jornalista, biólogo e doutor em Bioquímica e Biologia Molecular. Antes de se dedicar ao jornalismo, trabalhou em pesquisa no Centro Nacional de Biotecnologia, onde publicou 19 estudos científicos e revisões.

Artigos relacionados

0 Comments

Submit a Comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

error: Content is protected !!