Yuval Harari, entrevistado pelo FMI:
“A Inteligência Artificial é a tecnologia mais poderosa já criada”
Contribuição de imprensa do Fundo Monetário Internacional (FMI). Revista Finanças e Desenvolvimento.
O historiador e escritor israelense, um dos principais estudiosos do impacto da IA na evolução humana, alertou em uma entrevista que a nova tecnologia tirará das pessoas a exclusividade de impor emoções por meio da transmissão de relatos.
Segundo Yuval Harari, o impacto da Inteligência Artificial sobre a humanidade trará consequências tão profundas que, em um futuro não muito distante, os seres humanos terão que ceder a autoria da capacidade de influenciar os outros com suas narrativas, algo que desde sempre permitiu dominar o planeta.
O historiador e escritor israelense, que em seu livro Nexus explicou que o mundo está deixando para trás a economia do dinheiro para substituí-la por uma economia baseada na troca de informações, foi entrevistado em um podcast editado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Uma versão resumida dessa entrevista foi publicada na Finanças e Desenvolvimento (F&D), uma publicação do FMI. A seguir, o texto completo da entrevista:
F&D: Um dos princípios básicos da sua história do Homo sapiens é que somos os únicos com a habilidade de imaginar o futuro. Como a narração nos permitiu predominar sobre outras espécies que estão evoluindo ao nosso lado?
YNH: O poder reside na cooperação. Por exemplo, os chimpanzés só conseguem cooperar em grupos muito pequenos, mas a cooperação do Homo sapiens é ilimitada. Hoje existem 8 bilhões de pessoas no mundo que, apesar de muitas diferenças e conflitos, pertencem quase sem exceção às mesmas redes comerciais. Muitos dos alimentos, da energia que consumimos e das roupas que usamos vêm do outro lado do mundo, das mãos de pessoas que nunca encontramos. Essas amplas redes de cooperação são o nosso superpoder e estão baseadas na confiança. Então, é preciso perguntar de onde surge a confiança entre estranhos. Das histórias.
A confiança se constrói contando histórias nas quais muitas pessoas acreditam. Isso é mais fácil de ver no caso da religião: milhões de estranhos podem cooperar em obras de caridade, como a construção de hospitais, ou lutar em guerras santas porque acreditam na mesma mitologia. Mas o mesmo acontece com a economia e o sistema financeiro, porque nenhum relato teve tanto sucesso quanto a história do dinheiro. Basicamente, é a única história na qual todo o mundo acredita.
F&D: Mas você se refere ao dinheiro como um mero artifício cultural.
YNH: Exatamente. O dinheiro é uma história, uma invenção; não tem valor objetivo. Não se pode comer ou beber notas ou moedas, mas é possível dar a um estranho um pedaço de papel que não vale nada em troca de um pão que pode ser comido. A premissa fundamental é que todos acreditamos na mesma narrativa sobre o dinheiro; se deixarmos de acreditar, tudo desmorona. Isso já aconteceu ao longo da história, e acontece hoje com os novos tipos de moedas. O que são os bitcoin, a rede Ethereum e todas essas criptomoedas? São narrativas. Seu valor depende das histórias que as pessoas contam e acreditam. E o valor do bitcoin sobe e desce à medida que aumenta ou diminui a confiança das pessoas nessa narrativa.
F&D: Segundo seu último livro, Nexus, estamos deixando a economia do dinheiro por uma economia baseada na troca de informações, não de moedas. Como é a economia da informação?
YNH: Dou um exemplo: uma das empresas mais importantes na minha vida é o Google. Uso todos os dias, o dia todo. Mas meu extrato bancário não mostra nenhuma troca de dinheiro; nem eu pago ao Google, nem o Google me paga. O que o Google me dá é informação.
F&D: E você dá informação ao Google.
YNH: Exatamente. Dou ao Google muitas informações sobre o que gosto, o que não gosto, o que penso, qualquer coisa, e o Google as utiliza. No mundo inteiro, cada vez mais transações seguem esse formato de informação em troca de informação, e não algo em troca de dinheiro. O poder, a riqueza e o significado da riqueza passam de ter muito dinheiro para ter muitos petabytes de informação. O que acontece quando as pessoas e empresas mais poderosas são ricas no sentido de que possuem uma gigantesca quantidade de informação armazenada que nem se preocupam em monetizar, porque podem obter tudo o que querem em troca de informação? Para que precisamos de dinheiro? Se a informação serve para adquirir bens e serviços, o dinheiro se torna desnecessário.
F&D: Nexus parte da ideia de que as estruturas de poder e os sistemas de crenças surgiram de narrativas ao longo da evolução humana e contextualiza isso com a tecnologia atual. O que o livro diz sobre os perigos dessas redes de informação cada vez mais avançadas?
YNH: A primeira mensagem é quase filosófica: a informação e a verdade não são a mesma coisa. A maior parte da informação é fictícia, inverossímil e enganosa. A verdade é cara; é preciso se informar, coletar dados, dedicar tempo, esforço e dinheiro para encontrá-la. E muitas vezes, a verdade dói; por isso, ela é uma parte muito pequena da informação.
Outra mensagem é que estamos desencadeando sobre o mundo a tecnologia mais poderosa já criada: a IA. A IA é radicalmente diferente da imprensa, da bomba atômica e de qualquer outra invenção. É a primeira tecnologia da história que pode tomar decisões e criar novas ideias por si mesma. Uma bomba atômica não pode decidir onde detonar; a IA, sim. Pode tomar decisões financeiras e inventar instrumentos financeiros sozinha, e a IA que conhecemos hoje, em 2024, é apenas a forma rudimentar dessa revolução. Não temos ideia do que está por vir.
Algo importante, especialmente para o FMI, é que os pioneiros da IA são apenas um punhado de países. A maior parte dos países está muito atrás, e se não tomarmos cuidado, viveremos uma repetição da Revolução Industrial multiplicada por mil. No século XIX, apenas alguns países — Grã-Bretanha, depois Estados Unidos, Japão e Rússia — tomaram a dianteira na industrialização, enquanto a maioria dos outros não entendia o que estava acontecendo. Agora temos o tsunami da IA, e poucos países vão monopolizar esse poder, enquanto os demais podem ser explorados e dominados de maneiras sem precedentes históricos.
F&D: As decisões democráticas que as pessoas tomam estão baseadas nas histórias que ouvem: o que acontece quando essas histórias já não vêm de um ser humano?
YNH: Ocorre um terremoto. As sociedades humanas estão baseadas na confiança, e a confiança se baseia na informação e na comunicação. Uma mudança profunda na tecnologia da comunicação abala a confiança entre as pessoas. Pela primeira vez, as histórias que sustentam as sociedades humanas serão fruto de uma inteligência não humana.
A IA pode ser enormemente benéfica, mas se descontrolada pode representar um perigo existencial. Para mim, IA não significa Inteligência Artificial, mas Inteligência Alienígena. Não porque venha do espaço exterior, mas porque sai de nossos próprios laboratórios e toma decisões de uma maneira fundamentalmente diferente da humana. É um tipo alienígena de inteligência. É muito perigoso deixar bilhões de agentes alienígenas livres pelo mundo sem ter como garantir que usem seu poder em benefício nosso.
Contribuição de imprensa do Fundo Monetário Internacional (FMI). Revista Finanças e Desenvolvimento.
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